A Respeito dos Dons Espirituais: Continuacionismo ou Cessacionismo?

Aqui entramos num dos campos mais debatidos dos últimos tempos, desde que o movimento pentecostal, no início do século 20, disse ter restaurado todos os dons espirituais dos tempos apostólicos. Quero destacar quatro aspectos nesse sentido, para contribuir com o debate.

Inicialmente é preciso uma palavra sobre posicionamento teológico, pois geralmente quando alguém assume uma posição, surgem acusações e rótulos nem sempre felizes. Quando alguém se diz calvinista (ou arminiano), isso não significa necessariamente que essa pessoa concorde ou tenha que concordar com absolutamente tudo o que Calvino (ou Armínio) escreveu. Provavelmente os únicos dois que foram absolutamente calvinistas ou arminianos, nesse sentido, foram justamente Calvino e Arminio. Ser um calvinista hoje (como é o meu caso) significa seguir as linhas mestras do pensamento de Calvino, o qual, também pode ser encontrado em outros teólogos como Agostinho, do qual Calvino se dizia devedor, e acima de tudo, porque essas linhas mestras de pensamento são essencialmente bíblicas. E é só por isso que o calvinismo é tão excelente, na minha opinião, justamente por ser profundamente bíblico. O calvinismo não é uma camisa de força. Se fosse, estaria ocupando o lugar da Bíblia, e isso seria um tipo de idolatria. Só para dar um exemplo, hoje em dia, poucos calvinistas seguem o pensamento de Calvino em relação ao Domingo[1]. A maioria prefere seguir a posição da Confissão de Fé de Westminster (CFW)[2]. E alguém diria que a CFW não é calvinista?[3] Ou seja, mesmo que Calvino tivesse advogado uma posição estrita em relação ao cessacionismo ou ao continuacionismo, o fato de alguém adotar uma posição ligeiramente diferente não faz essa pessoa deixar de ser calvinista se ela mantiver as linhas mestras do pensamento reformado. O calvinismo é um sistema de teologia reformada, ou seja, uma correção dos problemas teológicos anteriores, especialmente os sustentados pela tradição romana. Mas não pretende ser a Palavra Final, pois o sistema pode ser continuamente reformado através das Escrituras.

Em segundo lugar, uma palavra deve ser dita sobre os termos. Continuacionismo e cessacionismo, na minha opinião, são termos impróprios. Não só porque não são bíblicos, como porque pretendem se impor sobre a própria Bíblia e, em última instância sobre o próprio Espírito. A Escritura diz que o Espírito concede os dons soberanamente, "conforme lhe apraz" (1Co 12.11). Mas os continuacionistas exigem que ele continue operando os mesmos sinais de outrora, e os cessacionistas exigem que ele não os realize mais. E o fato é que o Espírito Santo não disse nas Escrituras, de uma forma clara e inequívoca, nem uma coisa nem outra. Ao impor a opinião pessoal sobre a soberania do Espírito, ambos os grupos correm o risco de apagar o Espírito (1Ts 5.19). Os primeiros por se esquecerem que há um critério (1Ts 5.21), e os últimos por desprezarem o que Deus pode fazer (1Ts 5.20).

Em terceiro lugar, em linhas gerais os reformados creem que os dons revelacionais cessaram, mas os de ministério não. E aqui, mais uma vez, Calvino é útil, pois ao comentar sobre a atuação soberana do Espírito concedendo dons à igreja ele diz: "O Espírito de Deus, portanto, distribui estes dons entre nós, a fim de concentrarmos toda a nossa contribuição visando ao bem comum" (Comentário 1Co 1.12.11). Ou seja, Calvino cria que o Espírito ainda estava concedendo dons à igreja, porém, entendia que os dons revelacionais e também os de milagres e curas haviam desaparecido. Os primeiros porque a Revelação estava completa em Jesus Cristo, e os últimos por causa da própria evidência do Novo Testamento que aponta para o desaparecimento deles[4]. Calvino cria que diversos dons e ofícios eram temporários, pois tinham a função de lançar os fundamentos da igreja (Ef 2.20, Ver comentário em 1Co 12.28).

Parece de fato lógico pensar que os dons revelacionais não estão mais em atividade no mundo justamente porque Deus já revelou tudo o que era necessário para nossa salvação e aperfeiçoamento espiritual, e estas coisas estão registradas na Bíblia (2Tm 3.16-17). Tudo o que uma pessoa precisa para ser "perfeito e perfeitamente habilitado para boa obra" já foi registrado na Escritura (2Tm 3.17). Então, qual seria o sentido de Deus continuar revelando mais coisas assim? Por isso, quando continuamos buscando novas formas de revelação normativa, de certo modo estamos dizendo que o registro bíblico é insuficiente, e esta, sem dúvida é uma atitude perigosa. Mas isto não significa dizer que Deus parou de falar. Os reformados nunca defenderam essa posição. E, pasmem alguns, os reformados não insistem que Deus fala somente através das Escrituras. A teologia reformada sustenta, por exemplo, a chamada Revelação Geral. Significa dizer que Deus se revela através da natureza, conforme o Salmo 19 e Romanos 1.18ss tão claramente demonstram. Mas aqui chegamos ao ponto crucial. Nenhum reformado busca a revelação de Deus diretamente na natureza, antes observa a natureza através dos "óculos" das Escrituras. Portanto, em quarto lugar, a Escritura é o critério final, justamente por ser a Revelação Final. Ela tem o poder de julgar todas as demais maneiras de ouvirmos a voz de Deus. Parece que é justamente isso o que Paulo tem em mente quando ele diz "julgai todas as coisas, retende o que é bom", justamente num contexto de "não desprezar profecias" (2Ts 5.19-21).

Os reformados da Confissão de Fé de Westminster que declararam que uma vez que a Escritura está completa, "cessaram aqueles antigos modos de Deus revelar sua vontade ao seu povo" (I.1), complementaram isso dizendo que o critério último através do qual todas as disputas teológicas precisam ser solucionadas é "o Espírito Santo falando nas Escrituras" (I, 10). Os reformados criam em "iluminação espiritual", ou seja, que Deus pode sim falar comigo hoje. Ele pode me orientar nas decisões do dia a dia, mas não fará isso independentemente da Bíblia. Se Deus quiser, pode até mandar um anjo falar comigo, ou um sonho, ou a palavra iluminada de um crente fiel (alguém poderia dizer que Deus pode usar até uma mula se quiser, como no caso de Balaão). Mas nada disso será o critério final para eu saber qual é a vontade dele, até porque Paulo disse que se um anjo viesse falar aos gálatas um evangelho diferente daquele já revelado deveria ser considerado maldito (Gl 1.8). O meu critério é a Escritura. Através dela eu interpreto o modo como Deus fala na natureza. Através dela eu interpreto o modo como Deus pode falar no meu coração ou através de algum crente fiel. Estritamente, portanto, eu jamais chamaria esse "falar de Deus" de "nova revelação", pois se fosse, a Escritura não poderia ser juiz dele. Se a Escritura é seu juiz é porque esse falar de Deus não é novo, mas apenas um desdobramento daquilo que a Escritura já disse. Por isso o termo correto é iluminação.

Concluo dizendo que não creio em "novas revelações normativas", pois se acreditasse teria que dizer que a Bíblia ainda está sendo escrita. Creio que Deus "fala". O Espírito Santo habita o crente e o dirige, e ainda lhe deu um critério infalível para saber quando de fato ele está falando: a Escritura. Portanto, na minha opinião falar em ser estritamente continuacionista ou cessacionista é uma falácia metodológica. Alguns dons cessaram, outros não. Dons revelacionais eram temporários e cessaram, dons ministeriais continuam em ação. Acima de tudo, sejamos criteriosos. Não queiramos impor limitações para Deus, mas não nos esqueçamos dos limites que ele mesmo impôs: aquilo que ele já revelou e ordenou que fosse registrado na Escritura.

[1] Calvino parece não ver ligação entre o Domingo e o quarto mandamento, como posteriormente os Puritanos claramente veriam. Antes, entende que o Sábado foi abolido e o Domingo foi instituído para "fins eclesiásticos e políticos", ou seja, para que os trabalhadores tenham um dia de descanso e a igreja um dia para se reunir: "Pois, visto que para suprimir-se a superstição se impunha isto, foi abolido o dia sagrado observado pelos judeus; e como era necessário para se conservarem o decoro, a ordem e a paz na Igreja, designou-se outro dia, o domingo, para este fim" (Institutas, II, 33). Calvino inclusive entendia que, se uma igreja quisesse escolher outro dia para se reunir, embora ele próprio entendesse ser o Domingo o dia mais indicado, contudo não se oporia: "A tal ponto, contudo, não me prendo ao número sete que obrigue a Igreja à sua servidão, pois não haverei de condenar as igrejas que tenham outros dias solenes para suas reuniões, desde que se guardem da superstição. Isto ocorrerá, se se mantiver a observância da disciplina e da ordem bem regulada" (Institutas, II, 34).

[2] "Como é lei da natureza que, em geral, uma devida proporção do tempo seja destinada ao culto de Deus, assim também em sua palavra, por um preceito positivo, moral e perpétuo, preceito que obriga a todos os homens em todos os séculos, Deus designou particularmente um dia em sete para ser um sábado (descanso) santificado por Ele; desde o princípio do mundo, até a ressurreição de Cristo, esse dia foi o último da semana; e desde a ressurreição de Cristo foi mudado para o primeiro dia da semana, dia que na Escritura é chamado Domingo, ou dia do Senhor, e que há de continuar até ao fim do mundo como o sábado cristão" (CFW, XXI.7).

[3] Exceto, é claro, R. T. Kendall e os antinomianos...

[4] No caso do dom de curar, é interessante que Paulo não parece mais evidenciá-lo no final de seu ministério quando ao invés de curar Timóteo mandou que ele bebesse vinho misturado com água por causa de suas constantes enfermidades de estômago (1Tm 5.23). E também, em outra ocasião, ao invés de curar Trófimo, diz que deixou-o doente em Mileto (2Tm 4.20)

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